No More Takes: Elogio da Noite

sexta-feira, 18 de março de 2011

Elogio da Noite


Fazer o turno da noite não passa apenas por trabalhar entre as quinze e as vinte e quatro horas. Das quinze para diante toda a lógica laboral é outra. É um estilo de vida contracorrente, crepuscular, batmaniano, olheirento, boémio (para quem discorda de qualquer um destes atributos, sugiro a elaboração de um inquérito a uma amostra representativa da população laboral do setor do retalho. A aplicação dessa poderosa técnica das Ciências Sociais teria como objectivo avaliar a frequência de saídas à noite, o número de copos bebidos, o número de marcas de cerveja, discotecas, pubs e botecos conhecidos e a quantidade de ressacas ao longo do ano civil. Hipotetizo que se não houver um efeito de desejabilidade social, leia-se: “vou mentir nas respostas que dou para me encaixar nas convenções sociais percebidas como correctas”, o pessoal da noite dá uma abada aos saudáveis da manhã. Paga o figado e a conta ordenado. Pode haver uma explicação para este comportamento altamente social, mas auto-destrutivo no meio termo: fazer tudo inversamente ao protótipo do compincha da manhã, para acalmar o medo irracional de ser parecido com ele. Tem um quê de psicanálise barata, mas leituras lacanianas têm inúmeros efeitos secundários para além do delírio. Descarto liminarmente qualquer hipótese que traga à baila os incentivos para explicar a escolha do horário noturno).


Um dia após o outro, o homem-truta (perdoem-me mas vou empregar o género masculino. Mulher-truta é uma expressão no mínimo foleira, embora imagética (oiço cantos de sereias? Vejo Ulisses amarrado a um mastro, enquanto é tentado em pleno Mediterrâneo?) até ao tutano) não embarca no meio dos colarinhos branco encardido na 113, não sofre de indecisão na escolha da indumentária a vestir por cima do pêlo porque o tempo ameaça o aguaceiro-molha-tolos-durante-sete-minutos-e-picos, não houve o ruído de fundo do noticiário da SIC Notícias (ou da TSF, ou da Renascença, escolhe o leitor em função da sua faixa etária mental) ao mesmo tempo que ferra o dente nos cereais  Linha Zero, não regressa a casa com o mesmo maranhal (só que mais suado, mais entediado, mais enfadonho) com que apanhou a 113 das um quarto para as nove, não vai ao café lá do bairro esfumaçar e discutir sobre a parelha Zé-Merckel e a volatilidade dos mercados nos intervalos dos jogos do Benfica. Enfim, não vai ao Facebook – esse grande cátologo La Redoute de pessoas –  às vinte e uma horas e trinta e sete minutos. E, principalmente, não escreve textos mal amanhado às três e picos da manhã.

Deitar tardíssimo, e tarde, e a más horas, erguer é a maxima do preguiçoso encartado que apenas está a perpetuar, o melhor que pode e deve, a bem da identidade noctívaga acérrima, o regime vespertino do tempo em que se sentava nas carteiras escolares pré-Magalhães. 


Ocupado o espírito com estes pensamentos tão pouco veneráveis, sou interpelado por um casal jovem que olha para mim como um par de náufragos que descobriu o seu sexta-feira. Estabelecido o contato visual, o meu  pouco musculado lobo frontal começa carborar a toda a velocidade para perceber que tipo de máquina esta parelha em apuros vai levar para casa.

Antes de iniciar a palestra sobre as vantagens do estabilizador óptico, olho de soslaio para o relógio. São dezanove horas e vinte minutos. Ainda faltam umas horitas até as doze badaladas me libertarem para mais uma noite de cóboiada na capital.

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