No More Takes: Lytro: a máquina quase reversível

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Lytro: a máquina quase reversível


Lytro


Quando as primeiras imagens e comentários começaram a despontar aqui e ali na Internet, o tom era de assombro. A próxima revolução no universo fotográfico digital estava prestes a estalar e o rastilho não tinha sido ateado pelos dois gigantes nipónicos, Canon e Nikon.

O espanto entre os entusiastas da fotografia era maior porque o produto revolucionário que prometia virar de pernas para o ar o mundo das máquinas digitais não tinha sido fabricado num qualquer laboratório das marcas emergentes – Sony, Samsung, Panasonic - que avidamente tentam conquistar, ano após ano, uma maior quota de mercado.

Tudo tinha começado na academia, melhor: tudo tinha surgido com uma ideia desenvolvida numa tese de doutoramento em ciências informáticas.

Mas afinal, qual era a incrível ideia que mais tarde conseguiu atrair a atenção e os milhões dos capitalistas de Sillicon Valey?



Ren Ng, o autor da tese, propôs-se a resolver o problema de focagem nas câmaras fotográficas. Como Ng refere o problema reside na falta de informação fornecida ao sensor da luz que atravessa a lente. Somos assim apresentados a um clássico problema de rendimento técnico bem ao gosto dos engenheiros. Ou seja, na fotografia convencional existe um contributo insuficiente de cada raio de luz na formação da uma imagem, já que na verdade, a captura baseia-se no conjunto total de raios de luz que incidem em cada ponto do sensor.

Ng serve-se de uma analogia para ilustrar a questão: imaginemos gravação de uma música num estúdio. Optar por gravar todos os instrumentos em simultâneos enquanto tocam o mesmo tema equivale ao registo típico da fotografia convencional. Um registo para todo o som que paira no ar num dado instante. A solução de Ng passa por um gravação multitrack: um instrumento, uma faixa.

No plano material, a implementação técnica da solução implica mudanças estruturais no sensor e nas ópticas, de modo a aumentar a capacidade do dispositivo para medir a luz de cada raio que incide sobre o sensor. Por outras palavras, em cada exposição a máquina passaria a registar a distribuição geométrica total de luz. Já não falamos de uma espécie de registo da média dos raios de luz, mas sim do total dos contributos individuais dos raios. O objectivo deste malabarismo é capturar muito mais informação essencial para a focagem.

No entanto, tal como o autor adverte, isto é por si só insuficiente. O outro ingrediente que é necessário adiconar à receita é o poder da computação. É através dos algoritmos que a luz capturada é potencialmente maleável a posteriori, de modo a permitir diferentes combinações de focagem a partir do mesmo output.

Defendida em 2006 em Stanford, a tese foi premiada pela Association for Computing Machinery. Mas como já se adivinhava pela leitura do documento académico, os aplausos dos pares não eram a única ambição de Ren NG. Agora era tempo de passar para o nível comercial com a angariação de apoios para materializar as suas ideias num produto.


Surge então a Lytro com a sua inovadora forma de registo de luz de múltiplos ângulos graças à disposição de micro lentes no interior de um espaço limitado. Com a forma de um paralelepípedo, a Lytro tem um aspecto futurista e custa pouco imaginar um posterior desenvolvimento acoplado num par de óculos. Os poucos botões que apresenta servem para as funções comuns a todos os aparelhos electrónicos. A própria ausência de ícones e nomenclatura fotográfica tradicional leva-nos a crer que o público das point-and-shoots se sentirá em casa. Por aqui dá para perceber como as mudanças no design de interface e na linguagem adoptada no funcionamento dos aparelhos forja progressivamente uma nova cultura de consumidores. Um paralelo interessante é a gama NEX da Sony que remodelou voluntariamente os seus ícones de acesso a funções tendo em conta utilizadores cujas experiências na fotografia não foram além das ubíquas apontar-e-disparar.

Mas o que traz realmente de novo o aparelho com aspecto de baton? O funcionamento é parecido com uma qualquer máquina compacta: aponta, dispara, guarda. A parte interessante vem depois. Ligamos o PC, ou qualquer dispositivo com uma ligação à rede, transferimos o JPG para o software disponibilizado no site da marca e escolhemos a nosso bel-prazer os pontos de focagem da imagem. É aqui que está o âmago da revolução: o ponto de focagem é escolhido a posteriori da captura.

Ao longo da história da fotografia, as escolhas durante o acto fotográfico não variaram muito. A escolha da velocidade de obutaração, da abertura de diafragma, do ISO, do enquadramento, assim como a profundidade de campo, fazem parte da leque de opções que o fotógrafo deverá tomar em consideração antes do disparo. É este reportório que garante o domínio técnico e potencia a criatividade dentro de limites impostos pelo aparelho. Mas com lançamento da Lytro a nossa escolha sobre profundidade de campo é adiada para depois. E esse depois pertence por inteiro à fase de pós-produção.

No texto que acompanha o teste ao novo modelo, o Dpreview cunhou inclusive um novo conceito para essa virtualidade da Lytro que apelidou de refocusability range. Como afirma a site mais popular de comparativos online, o refocusability range é comparável à profundidade de campo tradicional, mas obedece a uma lógica temporal inversa. Assim, em vez de definirmos a área de focagem aceitável antes de tirarmos a fotografia, é a máquina que define o limite sobre o qual a profundidade de campo do nosso output pode ser alterada. Portanto, a esta altura do campeonato podemos dar-nos ao luxo de esquecer temporariamente uma tomada de decisão fotográfica para a revisitar mais tarde em frente a um ecrã. A situação pode ser pensada ainda de outra forma: uma mesma imagem fornece tantas profundidades de campo quantas o registo lumínico da máquina permitir. Entramos em definitivo no domínio do potencial.


Ng tem dito que com esta nova tecnologia a fotografia se tornará mais interactiva já que amigos e familiares poderão escolher diferentes pontos de focagem para uma mesma imagem. O que supreende nesta afirmação não é o aumento de interação social que já existe quanto duas pessoas discutem sobre o significado de uma determinada fotografia. O que espanta é a passagem para a pós produção de uma decisão individual que pertencia por completo a montante da captura imagem. A própria ideia que a fotografia tinha como objectivo captar um determinado momento e assim imortalizá-lo obedecia a uma ordem irreversível: ver, apontar, decidir, disparar, revelar, imprimir. Com o digital e a proliferação de editores de imagem o processo tornou-se cada vez mais circular: ver, apontar, decidir (mas pouco porque a máquina pode ter uma palavra a dizer), disparar, armazenar, decidir, voltara a decidir, re-decidir, armazenar, tornar a decidir, e quem sabe imprimir. Numa espécie de loop, voltamos eternamente à imagem, não só para a reinterpretar mas para a reconstruir no seu nível mais estrutural.

Perante a imensidão de aparelhos digitais que registam luz dá a sensação, a quem escolher trilhar esse caminho, que apenas o enquadramento não pode ser adiado. Isto porque ainda não inventaram uma máquina que faça a composição por nós.





2 comentários:

  1. Não ligando a essa implementação/dumbificação hipster da tecnologia presente, está aí um potencial engraçado em àreas diversas. Desde o foto-jornalismo pela maior praticabilidade, à vigilância electrónica sob forma de compressão de imagem.

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  2. O Dpreview cotou mal a máquina em termos de resolução, mas realmente um fotojonalista pode tirar proveito da nova tecnologia para desenrascar numa ou noutra situação.

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