No More Takes: Moonwalking with Einstein: a memória é uma arte

domingo, 15 de abril de 2012

Moonwalking with Einstein: a memória é uma arte

Moonwalking with Einstein
Se ao passearem pelos corredores de uma livraria os vossos olhos encontrarem Moonwalking with Einstein na prateleira de Física estranhem. Algum espírito distraído julgou o livro pelo título no momento da arrumação. Embora Einstein dê à costa, se a memória não me falha, duas vezes em duzentas e tal páginas - uma delas numa breve mas valiosa aparição na mente do autor – a ilustre teoria das cordas, o electromagnetismo e quejandos não figuram no conteúdo do livro de estreia do norte-americano Joshua Foer.


Perante a ambiguidade da catalogação o subtítulo, The Art and Science of Remembering, vem em nosso auxílio com pistas preciosas. Afinal, o aparentemente inclassificável livro versa sobre uma arte em desuso: a arte de recordar. Pelo meio, adivinham-se também evidências empíricas sobre o processo.

Corria o remoto ano de 2005. Foer começava a dar os primeiros passos no jornalismo e interrogava-se sobre quem seria a pessoa mais inteligente do planeta. Entretanto, é destacado pela revista Slate para cobrir um evento que tinha tudo para ser chatérrimo: o US Memory Championship. Mas ver uns tipos a memorizar a ordem de nove baralhos numa questão de minutos, só para encurtar a lista de feitos a figurar num hipotético Jackass intelectual tem grande probabilidade de causar espanto e um formigueiro de dúvidas num espectador.

Qual era o truque? Perante as proezas dos intitulados atletas intelectuais, Foer substituiu a busca da pessoa mais inteligente pela com maior capacidade mnésica. O interesse aguçou-se quando no final da prova lhe confidenciaram descaradamente que decorar listas telefónicas de fio a pavio está ao alcance de qualquer um. Um ano volvido, o nosso intrépido jornalista regressa para arrecadar o primeiro lugar da prova.

O relato do chegar, ver e vencer é na verdade a parte menos importante do livro. De algum modo, está presente para nos lembrar que qualquer um de nós poderia fazer o brilharete - com uma grande dose de sofrimento pelo meio é certo, como qualquer estudante de medicina atrapalhado com a cadeira de anatomia pode testemunhar. Aquilo que realmente interessa é a velha jornada do herói campbelliana – neste caso um herói com uma queda acentuada para a auto-depreciação. Tal Rocky Balboa, Foer suou as estopinhas para aumentar a sua capacidade mnésica e pelo caminho aprendeu uma ou duas coisas sobre si mesmo.

Durante o intervalo de tempo que decorreu entre as duas datas, não sabemos se ao som de Eyer of the Tiger, o jovem jornalista vestiu a pele de Malinowski e lá estudou afincadamente a sua tribo de mnemonistas com recurso ao bom método etnográfico. O mergulho de cabeça nesse universo esquecido permitiu-lhe expandir a sua memória de trabalho, entender os processos mnésicos recorrendo a cientistas, eruditos e gurus-marketers excêntricos e reflectir sobre o papel da memória na evolução humana.

Ao longo do árduo processo foi sempre acompanhado por uma espécie de Apolo Creed versão british, Ed Cooke, o excêntrico mnenomista que lhe descreveu em primeira mão o método de armazenamento e recuperação de informação. A construção da relação de amizade entre os dois que culmina com a entrada do norte-americano no clube Kuala Lampur 7, fundado por Ed e mais seis entusiastas das artes mnésicas, empresta à história um travo de excentricidade juvenil simpática. Ninguém pode dizer que geeks não são bros, nem cools. Pelo menos à sua maneira.

Assim, em busca da origem da arte perdida somos transportados até à Antiguidade clássica, onde foi forjado o method of loci por Simonides. Conta-se que o famoso poeta conseguiu identificar os cadáveres soterrados nos escombros de um edífico que momentos antes albergava uma alegre pândega. Bastou ao felizardo Simonides revisitar na sua mente o local intacto antes do desastre. A proeza de Simonides baseia-se na nossa invulgar capacidade para recordar imagens visuais. Afinal quem não se lembra do aspecto do seu quarto?

Ou seja, após a atribuir imagens distintivas e familiares – aqui entra a reveladora predisposição da nossa mente para construir e prestar atenção a imagens sexuais sórdidas - a pedaços de informação que pretendemos recordar, dispomos as imagens nas assoalhadas e recantos do nosso palácio mental, leia-se: locais que conhecemos de ginjeira. Recordar é um passeio pelos corredores e visualizar imagens salientes a saltarem na nossa direcção. A memória é um lugar.

É graças a esta associação entre o novo com o familiar que conseguimos armazenar e recuperar informação de forma mais eficiente. A nossa ideia intuitiva de memorizar no vazio fique assim em cheque. A via é indirecta: recordamos x porque sabíamos y. É a rede associativa mnésica que nos permite ter acesso a mais informação.

Mas numa época em que o preço das memórias externas é quase mais barato do que a factura da EDP, em que qualquer aparelho digital traz incorporado ou permite integrar dispositivos com uma capacidade de armazenamento brutal, o que nos leva a contrariar a tendência para a externalização da nossa memória? Num mundo em que a extensão digital da memória é praticamente ubíqua, todo este investimento não parece um caprichoso desperdício de tempo e energia?

A reposta imediata é sim. Se existe algo que conserva por um período indefinido, com elevada fiabilidade e por baixo custo tudo aquilo que já foi ou poderá ser relevante saber, podemos dar-nos ao luxo de esquecer.De preferência num disco rígido de 1 Tera. Para pensar noutras coisas, dizem uns, para procurar novidades dizem outros.

O livro tem o mérito de não nos dar uma resposta cabal à pergunta. Em vez disso, parte da questão para reavaliar a nossa relação ao longo do tempo com as tecnologias de prolongamento da memória. Começa com a mais óbvia de todas, a escrita, para retomar as dúvidas levantadas por Sócrates em Fedro de Platão sobre o valor para o intelecto da nova técnica; introduz Homero para indicar as diferenças entre literatura oral e a escrita; revisita a evolução dos suportes de leitura e a passagem de um modo de ler intensivo – ler para reter – para extensivo – ler para indexar referências. Enfim, o périplo pelo passado sublinha a ideia que numa era de escassez tornamo-nos mais conscientes da raridade e do valor da informação ao ponto de a trazer sempre connosco. Só é nosso o que recordamos.

Mas tudo tem um custo e ampliar os poderes da memória não é excepção. Para avaliar este ponto temos desafazer a imagem da memória como uma estrutura monolítica e estática, para a conceptualizar como um conjunto de domínios- de trabalho, declarativa, procedimental, de longo prazo – com funções diferentes esculpidas, tal como o nosso cérebro, pela selecção natural. Na savana era imperativo recordar o perigoso e o prazeroso.

Aqui entra a parte da ciência. Foer convoca o mágico número 7 do psicólogo cognitivo George A. Miller que demonstrou que a nossa memória de trabalho – uma espécie de pequeno armazém com informação acessível temporariamente – é de 7 dígitos com uma variação de dois para o melhor ou para o pior dos casos. Este intervalo atencional curto só é melhorado através do agrupamento e exposição repetida aos itens. A transposição desta primeira cancela rumo a um armazém de maiores dimensões - uma memória de longo prazo - implica assim partir pedra.

Mas na literatura sobre a memória existem casos excepcionais documentados. O mais conhecido, no sentido de uma memória perfeita, é de um outro jornalista, S.V. Shereshevskii. S sofreu um ataque epiléptico ainda criança o que estará na origem nas suas poderosas sinestesias. Embora de inteligência normal, possuía a extraordinária capacidade de recordar tudo que os seus sentidos captavam. Cada input - nota musical, um número - que recebia estava associada a uma cor que por sua vez lhe provocava uma sensação de paladar particularmente forte. O homem que era uma encarnação da personagem de Borges, Funes, foi estudado de perto pelo neuropsicólogo Alexander Luria, que acabou por escrever The Mind of a Mnemonist, onde dá conta das particularidades do caso. Há uma ou duas coisas que espantam em S: a primeira que ele não ensaiava ou codificava a informação, bastava-lhe ser exposto a ela. Os erros que cometia também são reveladores da natureza da memória: os enganos correspondiam a a falhas de percepção, da mesma forma que alguém confunde uma letra escrita a giz num quadro com outra. E a mais terrível de todas, porque ironicamente é um dos aspectos mais combatidos pela Humanidade: S não conseguia esquecer. Pior, por não esquecer vivia afogado em dados o que o impedia de pensar. Já Borges tinha antevisto no conto Funes, o Memorioso que para pensar é preciso abstrair, e abstrair nada mais é do que generalizar, logo seleccionar, e para seleccionar é obrigatório eliminar, votar ao esquecimento.

A outra face da moeda também é apresentada por Foer. HM, um paciente de Brenda Milner é o perfeito oposto de S. Após uma intervenção cirúrgica feita com o objectivo de diminuir os seus ataques epilépticos, onde lhe foram retiradas estruturas do lobo temporal medial, algo de estranho se deu. HM vivia agora no presente. Eternamente, num aqui e agora vagamente budista, como constatou Foer após o entrevistar. A sua capacidade para formar novas memórias estava fortemente prejudicada e assim continuava a viver como antes da cirurgia. Os anos passaram sobre HM mas não eram interiorizados. Em todo o caso, HM conservava a memória procedimental - aquela que usamos para aprender a andar de bicicleta -, o que permite perceber a complexidade da memória.

Após a leitura de Moonwalking with Einstein, não vamos ficar mais inteligentes, nem a nossa cabeça gigante para acolher carradas de dados. Na eterna luta para recordar, onde o preço a pagar pelo armazenamento é elevado e esquecer quase inevitável, cabe-nos apenas conhecer um pouco melhor os nossos constrangimentos naturais para guardar somente aquilo que importa. A nossa identidade.

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